O som que vem do lixo

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Começou com um processo natural. Eu queria um tambor. E eu tinha pouca grana. Mas algumas ideias. Depois vim a descobrir que isso era quase o suficiente.
Catei um porongo velho que tava parado há horas lá em casa, uma serra, uma lixa, uma faca sem ponta nem fio e tava feito o bojo. Um couro de bode – que furou em um tambor maior – tapava o buraco e uns metrinhos de corda davam a afinação. Faltava um par de aros, para esticar a pele e tava pronto!

Fui atrás de um serralheiro. Encontrei um bem bagaceiro, e até meio careiro. Deve ter me tirado pra banqueiro e quis me cobrar quase um tambor inteiro. Bem choradinho, saiu pela metade, uns vinte e cinco pila pelo que me lembro. Bueno, pagaria pelos aros e teria o tambor, ainda tava mais barato que na loja e – apertadinho, mas – ainda dentro do meu orçamento.


Só que não. Os aros ficaram meio tortos, o tambor não afinou, ficou jogado em cima do armário e acabou me sendo útil apenas como traje em uma foto que tirei pro Tabaré. Único traje, por sinal.

O melhor método pra aprender a fabricar um instrumento é tentando e errando. E talvez eu até devesse ter dado mais umas tentiadas, mas antes preferi dar uma observada em quem sabe. Aí eu comecei a ir atrás de caras que fabricam seus próprios instrumentos.

Pau com corda

Márcio Petracco e o fiel Bonifácio
Um cara que eu sabia que fabricava instrumentos era o Márcio Petracco. Pra quem não conhece, o Márcio é um dos músicos mais rodados do róque e afins aqui no estado. Tocou no TNT, nos Cowboys Espirituais e no Trem 27 e hoje se divide entre a TeNenTe Cascavel, o Conjunto Bluegrass Porto Alegrense, os Locomotores e é um d’Os Escolhidos do Gustavo Telles. Além, é claro, de ser um exímio adestrador de vira-latas. Um dos melhores da redenção, dizem. Fui até o apartamento do Márcio, do ladinho do parque, pra conhecer os instrumentos, trocar uma ideia e, de quebra, tomar um chá gelado. O contato foi facilitado por um ex-quase-parentesco-indireto. E pelo meu trabalho na TVE.


Fui recebido pelo dono da casa juntamente aos fiéis Bonifácio – o mais moço, “típico vira-latinha brasileiro”, meio mistura de fox paulistinha com sei-la-o-quê – e Chica, uma cadela anciã, tranquila, “só não pode chamar ela nem olhar muito diretamente”. O zeloso adestrador explica que ela tem uns traumas por ter apanhado quando era pequena, antes de ele adotá-la.

– Viu, Boni? Agora só por causa desse cara tu não vai passear...

Bueno, aos instrumas. A primeira informação foi um pouco desanimadora. Como era previsível, ele não tem encontrado tempo pra trabalhar nos instrumentos. E restam apenas alguns exemplares dos antigos.

O violão de lata de Synteko é um dos valiosos instrumentos
fabricados no tempo da oficina na FEBEM
– A maioria é do tempo da FEBEM. Eu dava uma oficina de fabricação de instrumentos pra jovens infratores na antiga FEBEM.

– Em que época, isso?

– Ah, bicho... Acho que início dos noventa. Alguns instrumentos ficaram lá, era parte do contrato eu deixar alguns instrumentos lá. E eles acabaram virando arma numa rebelião. Apesar da gurizada adorar os instrumentos, entre fugir de lá e ficar lá com os instrumentos, preferiram fugir, certamente.

Dentre os que sobraram, um violão de lata de Synteko, o segundo que ele fabricou, um cavaco de caixa de goiabada, outro violãozinho com corpo de lata “modelinho típico dos que a gente fazia na FEBEM” e o xodó do Márcio: um toco de madeira achado no lixo com tarrachas aleatórias de guitarras velhas e uma tampinha de refri que acabaram virando um lap steel – aquelas guitarrinhas de tocar no colo com uma barrinha de ferro. “Como ele é mais curtinho que a guitarra, eu uso as cordas que arrebentam da guitarra.”

O Petracco construiu esse steel sem nunca ter visto outro de perto, mas o instrumento ficou bom e ele chegou a usar em um disco dos Cowboys e até hoje usa nos shows d’Os Escolhidos. E ele ainda tira uma onda em relação à qualidade do steel sucateiro. “Com o passar do tempo eu fui tendo contato com outros instrumentos confirmados, clássicos, antigos e eu vejo que ele não perde pros bons. Eu fiz questão de deixar ele com um visual podrão porque eu tenho uns americanos, confirmados, bacanas e às vezes o pessoal confunde.”

E tem outra barbada em relação a esse instrumento. O Márcio diz que um instrumento elétrico, com captação, como esse, é mais fácil de fazer. Difícil é fazer um instrumento acústico, porque ele tem que ser ao mesmo tempo frágil, a ponto de ser sonoro, e rígido, a ponto de não “entrar em colapso”, como aconteceu com a primeira tentativa da carreira de luthier-lixeiro.

– E qual é a manha pra conseguir madeira boa no lixo? Tu fica sempre procurando?

– Sempre procurando não, mas eu passo por esses entulhos na rua e não resisto a dar uma espiadinha. Esses dias eu vinha pela Cidade Baixa e tavam demolindo uma casa ali, uma casa antiga, e tavam jogando fora umas janelas de imbuia, uma madeira top. Um troço pesado pra caramba e eu carreguei no ombro até aqui. Tinha uns pregos que eu precisei esquentar pra tirar. 

Essa carga de imbuia, junto com outra de pinheiro, estão guardadas a espera de um tempo livre pra luthieria caseira.

–Tá pra pintar uma jogada aí... Quem sabe?

Quem sabe, né? Aguardemos.

Da lata


Adriano Engel no Submarino Azul
 O Adriano Engel eu fiquei conhecendo através de um amigo. Ele disse que tinha comprado pela internet um pedal de distorção para guitarra feito em uma lata de sardinha. E se tu parar pra pensar, um pedal de efeito nada mais é do que um emaranhado de fios, fusíveis e capacitores ligados em uma sequência lógica com um botão de acionamento. O resto é lata. E, se lata, por que não de sardinha? Eu precisava conhecer esse cara. Fui atrás dele e descobri que mora em Canoas, bem pertinho dos trilhos do trensurb.

Depois de me perder um pouco por ruas que mudavam de nome, cheguei até o que o Adriano chama de Submarino Azul. Uma casa de fundos – obviamente azul – só com o segundo piso e formada por duas pequenas peças: no fundo o quarto com um banheiro e um beliche que ele divide com o filho, na entrada a luthieria, o galpãozito de reciclagem, a fábrica ou sei lá como se chama a peça onde ele fabrica seus pedais. E não só pedais. De cara ele me mostra uma guitarra que ele fez. Braço de violão e corpo que “já foi uma escrivaninha”. Bem na beiradinha do corpo tu nota uma marca de umidade. 

– Uma vez alagou a casa que eu morava e a guitarra ficou com essa parte embaixo d’água. Eu deixei assim que é pra mostrar que ela passou por uma enchente e sobreviveu.

O Adriano é formado em Análise de Sistemas e dá aula na Unisinos. Ou seja, a fabricação dos pedais é uma atividade secundária, pro tempo livre. Mesmo assim, ele conta que já vendeu mais de sete mil desde que começou esse projeto, há uns quatro anos. A maioria dos pedidos é feita pela internet e o próprio Adriano despacha por correio. Trabalho que tem que ser repetido umas três vezes na semana.

Os pedais de lata de sardinha ficaram famosos e chamaram a atenção de alguns grandes músicos brasileiros, como Tomate, do sexteto do Jô, Luis Carlini, Lulu Santos e Rita Lee.

O próximo objetivo do projeto é eliminar as substâncias tóxicas do processo de fabricação. Por exemplo, as placas eletrônicas são comumente corroídas com ácido. Ele desenvolveu uma minirretífica, que produz o mesmo efeito sem gerar resíduo. E o projeto não para, até porque o Adriano parece não – tentar, e portanto não – conseguir ficar muito parado. Além dos pedais, da guitarra à prova d’água, do banjo de lata de goiabada, das caixas de som em caixinhas de leite, do tecladinho moog de carcaça de DVD com dominós de osso, agora ele faz também amplificadores em latinhas de atum. E depois dos amplis, certamente ele vai inventar alguma outra coisa.

Bueno, agora só falta este ordinário repórter tomar vergonha na cara e terminar aquele tambor.



Por Laboratorio de Jornalismo Cultural do FABICO
O som que vem do lixo
dísponivel em < http://jornalismoculturalufrgs.blogspot.com.br/2012/07/o-som-que-vem-do-lixo.html
acessado em 06 de setembro de 2012 

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